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terça-feira, 26 de março de 2024

 

Dois Poemas na Semana Santa

Cyro de Mattos

 

Via impiedosa  

 

Cuspido no caminho  

por onde passa respinga

sangue dos espinhos  

que a carne perfura.

Do ódio não desistem 

gargantas que apedrejam,

  uma coroa sabe a dor

 do vento nas manadas

sem rumo enfurecidas. 

 

Todos os rancores   

vergastam no rosto,     

abomináveis renegam

a união como verdade.  

Tudo é solidão, é dor,      

o mundo que se cala

com a surra desferida  

 no rei único do perdão.  

 

Pelas ofensas cometidas,

sei que não sou digno

de entrar em tua morada,

mas basta uma só palavra 

para que eu seja salvo.   

Em tuas mãos entregue,

 faz de mim tua criatura, 

recolhe-me da injusta onda

entre vilezas tantas vezes

tingindo de roxo o coração.  


Canto de Amor

 E todo este peso

terrestre fez-se abrigo

na flor da comunhão,

de braços abertos

clamas como cacto

em amanhecer áspero

de vento sem querer

teu gesto da fraternidade.

 

E dignos não somos

de olhar este rosto

que pende no amor

do sangue derramado.

Solitários caminhos

 sem ternura cruzamos

sem querer ouvir tua voz

onde tudo é amor e perdão.

 

De teu canto do bem

pelos que têm fome e sede

há o sentimento que vem,

pode ir-se no dilema do pacto.

Das tuas boas obras fica 

o impacto mais poderoso

do ofertar do que em receber.

quinta-feira, 21 de março de 2024

 

             Terras de Salamanca

             Cyro de Mattos                           

 

Em outubro de 2013, participei do XVI Encuentro de Poetas Iberoamericanos em Salamanca, Cidade de Cultura e Saberes. Na oportunidade fiz lançamento de meu livro Onde estou e sou/Donde Estoy y soy , livro que primeiro foi publicado no Brasil e depois na Espanha pela Verbum Editorial, de Madri. Dei depoimento na universidade sobre minhas atividades literárias no Brasil, ao longo dos anos. Recitei poemas de minha autoria no Liceu de Salamanca lotado, juntamente com outros poetas presentes ao XVI Encuentro. Doei livros de minha autoria ao Centro de Estudos Brasileiros, em ato que constou da programação do evento que reunia poetas íbero- americanos.

Amizade que ficaria selada para sempre foi a que fiz com o poeta peruano-espanhol Alfredo Pérez Alencart, o coordenador dos Encuentros, figura rara como construtor de pontes entre os poetas ibero-americanos que comparecem ao evento de repercussão internacional. Professor da Universidade de Salamanca, esse incansável disseminador de poesia é poeta de alto nível, traduzido e publicado em mais de vinte idiomas. Um ser humano que veio a esse mundo para iluminar com a poesia a parte noturna de que somos feitos. Tinha em Jaqueline, sua princesa, a mulher ideal para acompanhar-lhe na aventura da existência.

Durante o Encontro tive a oportunidade de saber que Salamanca foi no início uma aldeia na colina, estava com ela séculos sobre o rio Tormes, inclinados à disseminação da arte e ao saber. Testemunhavam a passagem do tempo na formação da paisagem lendária váceos, vetões, romanos, visigodos e muçulmanos. Uma vocação universitária ressoava sob os passos do sol e da chuva, sustentava uma grande tradição de esplendor monumental. Por sua beleza antiga e riqueza histórica, o tempo foi justo ao fazer com que Salamanca ficasse conhecida como a Cidade de Cultura e Saberes.

Ficamos sabendo que na Plaza Mayor ocorrem falares diversos, decorrentes de frequente convivência entre o alegre e o triste, nisso que é esperança e incerteza em nossa caminhada na vida. Capítulos assim ali escorrem da vida cidadã, muitas vozes de mim e de outros fazendo o intercâmbio da natureza humana nesse antigo teatro da vida. Nas ruas iluminadas pelo ouro da cultura e do saber não se pode deixar de pensar que nelas andaram Fray Luiz de Léon, Unamuno, Francisco de Vitoria, Francisco de Salinas, Cervantes, São João de La Cruz, Luís de Gôngora, Santa Teresa de Jesus, Lope de Vega, Mateo Alemán, Vicente Espinel, Quevedo e Calderón de la Barca.

Naquelas ruas foram gravados os gestos da sabedoria e santidade humanas, refletidos por duas extraordinárias catedrais. Antes que adentre na cidade, o visitante é recebido com a alma gêmea delas. Numa casa de guardiã memória, conchas representam a cidade por vários rumos, decoram o mundo que estaciona para vê-la. Nas dobras do tempo, Salamanca oferta encantos ao visitante, inventa-se nessa crença de pedra, história e vasta fé. Apresenta-se sempre como um desafio, um mito, uma abertura, um enigma. De sentidos múltiplos, memórias que nela achamos e nos vemos inseridos em séculos de beleza antiga. 

            A fachada de casas, igrejas e edifícios basta para entender que estamos na história. Caminhar é a forma de descobrir segredos de quem também sabe ser contemporânea, jovial com estudantes de tantos lugares misturados na face agitada da cidade recheada de tradições na bela e antiga arquitetura. Quando a noite cai, luzes enchem a parte noturna, lugares em que o coração aprende que o amor se faz amando o mito, que se apodera da alma.

          Ó Salamanca, aqui o que vejo na tua fronte faz-nos como o ser da história. Essa luz que de ti se espraia a todo instante vem de teu chão para erguer os saberes seculares nos beirais floridos. 

 

sexta-feira, 15 de março de 2024

 

Livraria Civilização

     Cyro de Mattos

 

Quando estudante universitário, uma das coisas que gostava era de ir à Rua Chile. Quase todos os dias, visitava a Livraria Civilização Brasileira como uma necessidade que o tempo impunha, semelhante àquela quando se tem sede ou fome. Na Livraria Civilização percorria as prateleiras, procurando achar algumas dessas raridades literárias, que há algum tempo estivessem com a edição esgotada. Perguntava ao vendedor Toninho se havia chegado algum livro novo de literatura. Examinava na vitrina as obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Lima Barreto. Os livros de Dostoiewski, Hemingway, Faulkner, Sartre e Camus. Sagarana, de João Guimarães Rosa, e Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, lá estavam para causar impacto e opiniões acaloradas entre os companheiros de geração.

 Era na Livraria Civilização que me encontrava com os companheiros de geração, à qual alguns deles pertenciam por afinidades eletivas, enquanto outros em razão da idade. Ildásio Tavares, Alberto Silva, Ricardo Cruz, Marcos Santarrita, Orlando Sena, Olney São Paulo, João Ubaldo Ribeiro, Adelmo Oliveira, Fernando Batinga, Davi Sales, João de Góes Berbert, Carlos Falk e Carlos Nelson Coutinho. Encontrava, quase todos os dias, com três ou quatro desses companheiros de militância cultural, que se iniciava como botão ou rosa entreaberta no mundo da ideia e emoção.

 Conversava com Calasans Neto, Jurema Pena e Florisvaldo Mattos. Via o professor Machado Neto com os olhos atentos por trás dos óculos de lentes fortes perscrutando algum exemplar, provavelmente de sociologia ou filosofia. Cruzava com Hélio Rocha, Nélson de Araújo, Vivaldo Costa Lima, João Carlos Teixeira Gomes, Sonia Coutinho. Era comum naquele tempo Glauber Rocha aparecer com Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Peres, ou ainda com Carlos Anísio Melhor e Oto Bastos. Inteligência privilegiada, Glauber Rocha formava com os seus companheiros de geração um grupo de intelectuais irrequietos, que na época agitavam os meios culturais de Salvador.

Na Rua Chile, às sextas-feiras, pelo fim da tarde, gostava de ficar olhando nas vitrinas as camisas da última moda, a serem usadas pelos jovens no verão. Depois, naquele momento antecedido de ânsia, lá ficava no passeio de alguma loja, recostado à parede, vendo as garotas que desfilavam com uma ginga provocante. Mulatas, morenas, louras. Nelas aquele cheiro bom de maresia e ventos por toda a extensão da pele. Minhas preferidas eram as mulatas. De olhos gateados, seios despontantes, curvas sensuais. Não podia ver uma dessas mulatas com os quadris rebolando, com todo aquele sabor na pele de fruta gostosa, como já me referi. O romancista João Ubaldo Ribeiro se aqui estivesse agora não me deixaria mentir.

            Era lá na Livraria Civilização Brasileira que, entre um cafezinho e outro, intelectuais discutiam e compravam livros. A livraria famosa acabou num incêndio. A Rua Chile despareceu depois que a cidade transportou sua vida empresarial para o Polo Iguatemi.

        Como conforto de tudo que se evaporou, o tempo me fez autor de 70 livros, de diversos gêneros. Alguns fossem publicados também em outros idiomas.  Quis que vários deles fossem adotados na escola e universidade. Constassem do acervo de livrarias importantes, como  Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, Biblioteca da Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Fundação Eugênio de Andrade, Porto, Portugal; Biblioteca da Universidade de Austin, Texas;  Biblioteca do Congresso, Washington, USA,  Biblioteca da Universidade do México,  EUA; Biblioteca Nacional (Rio), Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, Biblioteca Pública do Estado da Bahia, Biblioteca da Academia de Letras da Bahia, Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, Salvador; Biblioteca Municipal de Itabuna, Biblioteca da Universidade Estadual de  Santa Cruz, Sul da Bahia, Biblioteca da Universidade da Maramata, Ilhéus; Biblioteca do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões, Centro de Documentação, da Universidade Estadual de Santa Cruz, Biblioteca Pública Central dos Barris, Salvador.

            Nessa estrada dos livros, a essa altura comprida, nunca vou me esquecer do vendedor Toninho, da Livraria Civilização Brasileira. Vendeu muitos livros em prestações razoáveis ao moço do interior, de mesada apertada, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

           Sempre me reservava boas surpresas.

        - Olhe aqui o que eu guardei para você – mostrava-me o livro com o riso costumeiro.

        Era o último exemplar de O Muro, contos, de Jean Paul Sartre,

quinta-feira, 7 de março de 2024

 

           Um Pouco da Vida do Pai

            Cyro de Mattos

 

         A mãe contou ao filho um pouco da vida do pai quando era rapaz.  Nunca teve ajuda de ninguém para sobreviver na dura lei da vida. Chegar ao que chegou como homem dono de um patrimônio respeitável, sem nunca ter cursado uma escola, aprendendo a ler, escrever e fazer conta com esforço próprio, era para aplaudi-lo sem economizar as palmas.  Fizera o patrimônio com esforço, muito trabalho e esperteza nos negócios.  Era por isso que pessoas na cidade não hesitavam em dizer que o pai era um homem admirável, exemplo de vida que deveria ser seguido por outras pessoas, que quisessem fazer fortuna. 

         O pai trabalhou na roça de fazendeiro rico quando rapazinho, o buço sombreando o lábio. Roçou pasto de plantas daninhas com foice e facão afiados, limpou chácaras e represas com água no pescoço. Derrubou com o machado árvore grande que servisse para fazer tábua, estaca, ripa, peça para esteio, cancela e cumeeira de casa.        

       Fez calo nas mãos, de tanto derrubar a árvore com o machado.  Veio para a cidade e passou a ser balconista numa loja da rua do comércio, que vendia artigos para campo e cidade. O dono da loja deixava que o pai dormisse embaixo do balcão. Acordava cedo, perto de clarear o dia. Fazia o café num pequeno cômodo, nos fundos da loja. Bebia sem um pingo de leite, acompanhado do pão amanteigado. Usava para fazer o asseio do corpo o pequeno banheiro da loja, com uma pia, chuveiro e vaso sanitário. Era ele quem cedo abria a loja para o movimento do dia.

         Juntou dinheiro com parte do ordenado que ia ganhando a cada mês e se afastou do emprego de balconista na loja. Comprou uma vendola de beira de estrada, nos arredores da cidade. Acordava de madrugada, fazia a refeição do café da manhã, a seguir abria a porta da frente da vendola. Morava num cômodo estreito, ele mesmo lavava sua roupa no riacho que passava nos fundos da vendola. Ensaboava, enxaguava, botava para secar no varal. Com a roupa seca e limpa, usava o ferro de passar para deixá-la pronta de ser usada na semana.  De segunda a sábado, atendia na vendola os que passavam para o trabalho na cidade e ali paravam para comprar alguma coisa ou os que voltavam das compras que faziam no comércio e se dirigiam para as roças com os burros carregados de mantimentos.

         A vendola fora o começo de tudo para o pai fazer o patrimônio. Foi dela que teve umas rendas miúdas, mas frequentes, dando para juntar o dinheiro que ganhava, guardado no baú. Foi assim que com trabalho e tirocínio construiu a primeira avenida de casinhas no outro lado do rio. Quando isso aconteceu, ele mesmo era o pedreiro, às vezes fazia o papel de servente da obra, mexendo com a enxada a massa de cimento, misturando-a com areia e um pouco de água, derramada na lata, até que desse no ponto para levantar e rebocar a parede de tijolo.

       Tempos depois deu para comprar terrenos baldios nos bairros e centro da cidade. Comprava casas velhas, reformava-as para que fossem alugadas. Um dia adquiriu uma pequena fazenda de cacau naquela região que tinha a fama de possuir a terra fértil, onde tudo que se plantava dava com fartura. Como as estações eram temperadas de sol e chuva, o que se plantava vingava na hora certa.   (Capítulo do romance Do Menino Se Fez o Homem, em andamento para ser impresso, com o selo editorial da Fundação Casa de Jorge Amado, de Salvador.)

 

 

          

 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

 

              A Mudança do Mau-Caráter

 

    Cyro de Mattos

                  

                   Nunca suportou

                   os ganhos do vizinho

                   na vida.

 

 

Inconformado com a morte do vizinho. Chorou, soluçou, gemeu, uivou.  Em estado lamentável, indisposto nas refeições, o coração nas profundezas do desvão, só depressão. A mulher sem entender a reação brusca. Deveria estar feliz. Nunca suportou os ganhos do vizinho na vida. Sortudo, bafejado pela sorte, repetia com o rosto de cólera. Esbravejava, os punhos cerrados.

O vizinho presenteado com a felicidade por todos os lados.  Mulher esbelta, filhos saudáveis, família invejável. Carro de luxo. Casa grande com piscina, jardim, quintal. Patrimônio sólido. Nada lhe faltava.

Lamentava o seu tanto pelo canto, saía mês, entrava mês. Casa pequena, tinta desbotada nas paredes.  Precocemente envelhecido como a mulher, órfão de pai e mãe, ainda por cima sem filhos, no lar o vazio avançava numa doença incurável.  Mísero salário, balconista na casa de materiais para construção.

Ruminava as pragas, jogadas no outro. À tona a fúria, babava-se, tomado na vontade de querer quebrar tudo em casa.  Ter que aturar aquele felizardo ao lado, bafejado com as benesses da vida. Uma desgraça, não merecia a vizinhança daquele homem felizardo, afrontas com o brilho nos olhos, a dentadura perfeita, riso de que vivia com gosto, de bem-estar com a vida.

Até quando suportar aquela fronte tocada de vitórias? Acumuladas do seu lado como fraturas e feridas, que não se fechavam no seu jeito pessimista de sentir a vida.       

Daí houve a incompreensão da mulher, em razão de sua repentina mudança de atitude. Consternado com a morte do vizinho, o fato em si deveria funcionar ao contrário, um alívio chegado em boa hora. Vitória finalmente festejada, anunciada sem pejo pela indesejada, sua visita varria as desigualdades, nivelava as diferenças com um só padrão coberto de pó e esquecimento. 

 Triste, muito triste, o quadro hostil da indesejada, dona de um sinistro rosto, famoso, impenetrável. Disse com a voz categórica, vou ao velório, acompanho o enterro, levo uma coroa de flores, deposito no túmulo dele. 

As pessoas surpresas com o seu gesto súbito.

Mostrava-se arrasado. Sem querer acreditar na última pá de terra jogada na cova. Nunca mais ia vê-lo no passeio da casa ao lado, movimentando-se lá dentro, cercado de conforto, cantarolando, beneficiado em tudo, entre os poucos privilegiados na dura lei do cotidiano.                           

Nos dias revoltos odiá-lo, nunca mais. Morreria breve, frustrado. De inveja incomum agora ausente, sem o traiçoeiro ciúme, raiva primorosa, seguidas vezes levando-o ao desconforto.   

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

 

  CARNAVAL ANTES

 Cyro de Mattos

 

Em Itabuna, antigamente os vizinhos costumavam colocar cadeiras no passeio para desfiarem um dedo de prosa. Esse costume servia para que estreitassem os laços de amizade, distraindo assim a mente cansada dos afazeres diários. Com a lua clara prosseguia a conversa animada entre os vizinhos, geralmente em torno de um assunto interessante ligado à cidade, até quando fosse chegada a hora de se recolherem no sono que descansa e reconforta. Numa dessas conversas entre vizinhos, eu escutei seu Zeca, o dono da farmácia, dizer a meu pai que o começo do carnaval em minha cidade remontava ao ano de 1908. A festa naqueles idos era conhecida como “Domingo do Entrudo”.

 

Escutei também o dono da farmácia dizer que no começo os bailes carnavalescos eram realizados no armazém da rua do comércio ou no Cine Odeon. Com a inauguração do primeiro clube, em 1940, os bailes mudariam de cenário. Durante quatro noites e duas matinês, foliões adultos e pequenos iriam ser acolhidos agora nos salões de um clube. Ao lado do carnaval nas ruas, a folia passava a contagiar no clube os blocos formados por senhores e senhoras, rapazes e moças da elite. De bigode retorcido nas pontas, de braço dado com as esposas, esses senhores sisudos davam voltas contínuas no salão. Bem entusiasmados, não paravam de cantar as marchinhas “Linda Lourinha”, “Pirata da Perna de Pau”, “As Pastorinhas”, “Touradas em Madri”, “Alá-Lá-Ô” e tantas outras que ficaram famosas em nosso cancioneiro popular.

 

O Carnaval de ontem era do tempo da serpentina, confete e lança perfume só para animar. Era o carnaval da musa colombina, pierrô apaixonado, arlequim sonhador, palhaços que não paravam de brincar e soltar piadas para as moças. Era o Carnaval dos quadros satíricos em que não faltavam fantasias e brincadeiras bobas. Era comum a sátira ser usada por blocos e cordões. Aproveitava-se um fato político, econômico, social ou esportivo com repercussão no ano como assunto engraçado para animar o carnaval.

 

Pessoas de minha cidade, que pertencem a uma geração mais velha, tem saudade do Carnaval daquele tempo. Uma dessas pessoas é seu Sessa. Funcionário Aposentado do Banco do Brasil, outrora folião dos mais animados, disse certa vez que nunca vai se esquecer daquele palhaço irrequieto e da pastorinha enamorada. Daquele palhaço de calças folgadas e nariz de limão, que não parava de pular e soltar piadas no salão quando a orquestra fazia uma pausa para que os foliões descansassem um pouco.

 

Já vai longe o tempo em que o carnaval começava cedo, aos sábados. Vestindo calça listrada, sem camisa, usando cartola e fraque, o Zé Pereira aparecia tocando o bombo, com meninos sujos e afoitos atrás. Batia forte no bombo o Zé Pereira, em frente às lojas e armazéns. Já vai longe esse tempo, o Zé Pereira ordenava a toda voz aos comerciantes que fechassem suas portas. É pra já! Cedo a folia vai tomar conta da cidade, ele dizia.

 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

 

 

Meu Bahia na mocidade  

 Cyro de Mattos 

Depois que vi o Bahia jogar em minha cidade natal, no velho Campo da Desportiva, passei a ter duas paixões como fiel torcedor de um time grande de futebol. Agora era torcedor do Vasco da Gama do Rio e do Bahia de Salvador.

Já crescido, esse mesmo menino dentro do rapaz, que fora estudar em Salvador, saberia das gloriosas conquistas de seu novo time de futebol com as cores azul, vermelho e branco.  Procediam do querido Bahia, famoso tricolor de aço, um time sem igual, o que nasceu para vencer na boca do torcedor. O moço do interior apegara-se tanto ao famoso esquadrão tricolor que não parava de torcer na arquibancada de cimento do estádio da Fonte Nova durante o desenrolar da partida.

Tinha certeza da batalha vencida quando a partida jogada era válida pelo campeonato estadual. Vibrava inquieto com as jogadas magistrais dos craques de seu time do coração, ídolos para ver e não esquecer. No meio da torcida desfraldava a bandeira de seu amado tricolor baiano, não perdia um jogo, soltava da garganta o grito de gol com todas as forças que pudesse retirar do coração de adolescente.    

         As vitórias desse Bahia vitorioso empolgavam, atravessam agora a memória do torcedor idoso e se aninham no fundo do gol como se o ontem fosse o hoje. Emerge do fumo do tempo com a sua maneira afetiva e festiva de se manifestar no teatro da bola. Tem o hábito de fazer com que o torcedor seja capaz de se reinventar diante do sol partindo-se na gargalhada da vitória. É o autor de proezas como poucos times conseguem realizar quando então a torcida entra em delírio, justamente no momento em que a bola foi morrer no fundo do gol quando a derrota parecia ser inevitável. Bahia! Bahia! Bahia! O grito sonoro de mais um Bahia, repetido seguidas vezes, de repente inventa um coral diferente com o qual o pobre fica rico, o gago aprende a falar, qualquer um se torna herói ante os maiores desafios da vida.

           O grito do torcedor entusiasmado propaga-se com os sons da alegria derramados ao toque do hino eletrizante do time, a invadir as ruas e os becos da cidade de santos e orixás.  Em pouco instante a maior felicidade cabe em vários cantos da cidade com a sua beleza antiga, vibra por onde o trio elétrico segue tocando o hino do esquadrão de aço. A festa da vitória irrompe e não cessa com as vozes do amor impregnadas de fé pelo time mais popular da Bahia.  

           Há muito tempo soube que a vida tem algo diferente para o torcedor do Bahia. Principalmente quando a bola balança a rede do gol adversário com o chute desferido pelo craque Léo Briglia. Num pacto da emoção com a paixão, selado com a conquista de outro campeonato, há então um torcedor veemente que proclama:

            - Deus me livre não ser torcedor do Bahia!  

           Ah, meu Bahia, de uns anos para cá, vejo-te tropeçando nas pernas, sem aquela garra e técnica admiráveis, que o faziam brilhar com as vitórias nos gramados baianos e de fora. Ando meio sem graça com sua performance, rolando nos últimos lugares do campeonato brasileiro de futebol, lutando para não ser rebaixado para a segunda divisão. Como dói. Tenho saudades de mim, daquele moço vindo interior para cantar teu hino brioso no estádio cheio da fonte Nova.

 

Somos a turma tricolor

Somos a voz do campeão

Somos do povo um clamor

 

Ninguém nos vence em vibração!

Vamos, avante, esquadrão!

Vamos, serás o vencedor!...

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

 

Angústia e Medo de Anne Frank

 

Cyro de Mattos

 

Um dos livros que mais me causou profunda tristeza foi O diário de Anne Frank. Antes de ler esse livro, já sabia que a jovem Anne, seus pais, a irmã e os outros quatro clandestinos que viviam no Anexo do escritório iriam ser descobertos a qualquer dia e seriam enviados pelos alemães para o campo de concentração. Como não queria que isso acontecesse, era impotente para impedi-lo, a tristeza foi se alojando dentro de mim na medida em que ia lendo os relatos e conhecendo o círculo negro que se fechava em torno de oito criaturas vivendo como ratos. O que o poeta Cassiano Ricardo disse certa vez, a mais difícil prova é a da inocência, deixava de ser metáfora dolorosa para ser verdade cruel diante de meus olhos, vinda da leitura que eu fazia de O diário de Anne Frank.

A destruição da inocência mostrava-se diante de mim com a força de relatos que descreviam atrocidades e horrores cometidos contra os judeus. A pungente narrativa da jovem Anne Frank conta isso no período compreendido entre 12 de junho de 1942 a 1* de agosto de 1944 quando viveu escondida no Anexo do sótão do escritório de Otto Frank, durante a Segunda Guerra Mundial. Aflições de uma menina que se faz mulher, a revelação do amor em seu primeiro despertar, pequenas alegrias de um espírito jovem que sonha em ser jornalista e escritora, para que não se tornasse uma pessoa comum, mas útil mesmo depois de morta, tudo isso na adversidade aterradora dos momentos revela uma alma ingênua, que cresceu e amadureceu durante o sofrimento.

Filha de um banqueiro e de uma dona de casa, aos quatro anos de idade Anne foi obrigada a sair da Alemanha com a família, pouco depois da chegada de Adolfo Hitler ao poder. Com a perseguição aos judeus deflagrada também na Holanda, Otto Frank, a senhora Frank, a adolescente Anne Frank e a irmã Margot unem-se ao senhor van Daar, senhora Daar, o filho Peter e o cidadão Dussel e decidem se esconderem dos invasores alemães.

Anne Frank chamou seu diário Querida Kitty, durante o período de angústia e medo, alimentação com legumes podres e mau cheiro de objetos no Anexo. O diário foi para sua alma angustiada o único instrumento que encontrou para liberar os pensamentos e sentimentos. Ela passou a registrar com realismo do que vivia a tensão e as transformações dos confinados, constantemente se chocando uns com os outros. A atmosfera desesperadora, a conversa em sussurros, os momentos em que nem podiam se mexer, a fome terrível, os juízos vindos da crença em Deus, a distração que consistia em ouvir rádio com as notícias da guerra e a leitura de alguns livros, muitos dias de silêncio entram no conteúdo do diário numa época em que os ideais são estilhaçados e ressoam como caos, sofrimento e morte. E essa era a época em que a humanidade vivia no século que celebrava os tempos modernos, marcados pela chegada da aviação, cinema e psicanálise.

Pessoas pobres e desamparadas eram retiradas de suas casas. Mulheres chegavam das compras e descobriam que as casas foram lacradas e as famílias desapareceram. Crianças voltavam das escolas e não encontravam mais os pais. Milhares de judeus sob o ritmo implacável de um programa com incrível capacidade de persistência eram eliminados pelos alemães. Selecionavam homens, mulheres e crianças. Separavam os pais dos filhos, as mulheres dos maridos. Não poupavam os velhos e os doentes. Formava-se o grupo dos condenados à morte, o dos trabalhadores forçados, ao mesmo tempo em que todos eram despojados de sua identidade cultural, a qual era substituída pelo número de série tatuado no pulso. Tinham as cabeças raspadas.

A talentosa escritora adolescente indaga a certa altura de seu diário que sentido tem a guerra. Por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por que toda aquela destruição? Como gado doente e sujo, que vai para o matadouro, criaturas indefesas apertadas nos vagões. Uma nação moderna, com a sua cultura requintada, que dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel, agora bloqueava um povo, recuando-o para os subterrâneos mais indignos.

Frágil e indefesa, tanto quanto milhares, Anne Frank morreu de tifo, no campo de concentração Bergen-Belsen, aos 15 anos de idade. Sua vida contradizia uma condenação sem sentido no diário que deixou como um memorial precioso para a humanidade. Destacam-se nesse livro sentimentos e pensamentos inquestionáveis, como o de que sem liberdade o ser humano não respira, caminha numa viagem dolorosa por um buraco negro feito de irracionalidades.

 

 

Angústia e Medo de Anne Frank

 

Cyro de Mattos

 

Um dos livros que mais me causou profunda tristeza foi O diário de Anne Frank. Antes de ler esse livro, já sabia que a jovem Anne, seus pais, a irmã e os outros quatro clandestinos que viviam no Anexo do escritório iriam ser descobertos a qualquer dia e seriam enviados pelos alemães para o campo de concentração. Como não queria que isso acontecesse, era impotente para impedi-lo, a tristeza foi se alojando dentro de mim na medida em que ia lendo os relatos e conhecendo o círculo negro que se fechava em torno de oito criaturas vivendo como ratos. O que o poeta Cassiano Ricardo disse certa vez, a mais difícil prova é a da inocência, deixava de ser metáfora dolorosa para ser verdade cruel diante de meus olhos, vinda da leitura que eu fazia de O diário de Anne Frank.

destruição da inocência mostrava-se diante de mim com a força de relatos que descreviam atrocidades e horrores cometidos contra os judeus. A pungente narrativa da jovem Anne Frank conta isso no período compreendido entre 12 de junho de 1942 a 1* de agosto de 1944 quando viveu escondida no Anexo do sótão do escritório de Otto Frank, durante a Segunda Guerra Mundial. Aflições de uma menina que se faz mulher, a revelação do amor em seu primeiro despertar, pequenas alegrias de um espírito jovem que sonha em ser jornalista e escritora, para que não se tornasse uma pessoa comum, mas útil mesmo depois de morta, tudo isso na adversidade aterradora dos momentos revela uma alma ingênua, que cresceu e amadureceu durante o sofrimento.

Filha de um banqueiro e de uma dona de casa, aos quatro anos de idade Anne foi obrigada a sair da Alemanha com a família, pouco depois da chegada de Adolfo Hitler ao poder. Com a perseguição aos judeus deflagrada também na Holanda, Otto Frank, a senhora Frank, a adolescente Anne Frank e a irmã Margot unem-se ao senhor van Daar, senhora Daar, o filho Peter e o cidadão Dussel e decidem se esconderem dos invasores alemães.

Anne Frank chamou seu diário Querida Kitty, durante o período de angústia e medo, alimentação com legumes podres e mau cheiro de objetos no Anexo. O diário foi para sua alma angustiada o único instrumento que encontrou para liberar os pensamentos e sentimentos. Ela passou a registrar com realismo do que vivia a tensão e as transformações dos confinados, constantemente se chocando uns com os outros. A atmosfera desesperadora, a conversa em sussurros, os momentos em que nem podiam se mexer, a fome terrível, os juízos vindos da crença em Deus, a distração que consistia em ouvir rádio com as notícias da guerra e a leitura de alguns livros, muitos dias de silêncio entram no conteúdo do diário numa época em que os ideais são estilhaçados e ressoam como caos, sofrimento e morte. E essa era a época em que a humanidade vivia no século que celebrava os tempos modernos, marcados pela chegada da aviação, cinema e psicanálise.

Pessoas pobres e desamparadas eram retiradas de suas casas. Mulheres chegavam das compras e descobriam que as casas foram lacradas e as famílias desapareceram. Crianças voltavam das escolas e não encontravam mais os pais. Milhares de judeus sob o ritmo implacável de um programa com incrível capacidade de persistência eram eliminados pelos alemães. Selecionavam homens, mulheres e crianças. Separavam os pais dos filhos, as mulheres dos maridos. Não poupavam os velhos e os doentes. Formava-se o grupo dos condenados à morte, o dos trabalhadores forçados, ao mesmo tempo em que todos eram despojados de sua identidade cultural, a qual era substituída pelo número de série tatuado no pulso. Tinham as cabeças raspadas.

A talentosa escritora adolescente indaga a certa altura de seu diário que sentido tem a guerra. Por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por que toda aquela destruição? Como gado doente e sujo, que vai para o matadouro, criaturas indefesas apertadas nos vagões. Uma nação moderna, com a sua cultura requintada, que dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel, agora bloqueava um povo, recuando-o para os subterrâneos mais indignos.

Frágil e indefesa, tanto quanto milhares, Anne Frank morreu de tifo, no campo de concentração Bergen-Belsen, aos 15 anos de idade. Sua vida contradizia uma condenação sem sentido no diário que deixou como um memorial precioso para a humanidade. Destacam-se nesse livro sentimentos e pensamentos inquestionáveis, como o de que sem liberdade o ser humano não respira, caminha numa viagem dolorosa por um buraco negro feito de irracionalidades.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

            A Mudança 

 

Cyro de Mattos

 

Inconformado com a morte do vizinho. Chorou, soluçou, gemeu, uivou.  Em estado lamentável, indisposto nas refeições, o coração nas profundezas do desvão, só depressão. A mulher sem entender a reação brusca. Deveria estar feliz. Nunca suportou os ganhos do vizinho na vida. Sortudo, bafejado pela sorte, repetia-se, o rosto de cólera. Esbravejava, os punhos cerrados.

O vizinho presenteado com a felicidade por todos os lados.  Mulher esbelta, filhos saudáveis, família invejável. Carro de luxo. Casa grande com piscina, jardim, quintal. Patrimônio sólido. Nada lhe faltava.

Lamentava o seu tanto pelo canto, saía mês, entrava mês. Casa pequena, tinta desbotada nas paredes.  Precocemente envelhecido como a mulher, sem filhos, no lar o vazio avançava numa doença incurável.  Mísero salário, balconista na casa de materiais para construção.

Ruminava as pragas, jogadas no outro. À tona a fúria, babava-se, tomado na vontade de querer quebrar tudo em casa.  Ter que aturar aquele felizardo ao lado, bafejado com as benesses da vida. Uma desgraça, não merecia a vizinhança daquele homem felizardo, afrontas com o brilho nos olhos, a dentadura perfeita, riso saudável, de bem-estar com a vida.

Até quando suportar aquela fronte tocada de orgulho? Fraturas e feridas, riscava.    

Daí para a incompreensão da mulher, houve repentina mudança de atitude. Consternado com a morte do vizinho, o fato em si deveria funcionar ao contrário, um alívio, em boa hora. Vitória finalmente festejada, anunciada sem pejo pela indesejada, sua visita varria as desigualdades, nivelava as diferenças com um só padrão coberto de pó e esquecimento. 

 Triste, muito triste, o quadro hostil da indesejada, dona de um sinistro rosto, famoso, impenetrável. Disse, vou ao velório, acompanho o enterro, levo uma coroa de flores, deposito no túmulo dele. 

As pessoas surpresas com o seu gesto súbito.

Mostrava-se arrasado. A última pá de terra jogada na cova. Nunca mais ia vê-lo no passeio da casa ao lado, movimentando-se lá dentro, cercado de conforto, cantarolando, beneficiado em tudo, entre os poucos privilegiados.                           

Nos dias revoltos odiá-lo, nunca mais. Morreria breve, frustrado. De inveja incomum ausente, traiçoeiro ciúme, raiva primorosa, seguidas vezes o desconforto.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

 

Revista italiana publica textos de

Cyro de Mattos e Ildásio Tavares

 

 

Editada pela escritora Antonella Rita Roscilli, doutora em letras, a revista intercultural SARAPGEBE, bilíngue, português e italiano, acaba de publicar o seu número 28, no qual você poderá ler em italiano ou português artigos de escritores brasileiros e italianos. O número atual começa com uma cuidadosa e justa homenagem a Domenico De Masi, professor estudioso, sociólogo, pesquisador e sempre amigo do Brasil, escrita pelo renomado escritor Noronha Goyos Jr, ex-presidente da UBE-União Brasileira dos Escritores.

 

A seguir, informa o editorial que um belo ensaio do escritor, poeta e crítico literário brasileiro Cyro de Mattos fará refletir o leitor sobre a escrita de Jorge Amado. Além disso, dois artigos pretendem relembrar a memória do prof. Giovanni Ricciardi, um dos mais ilustres brasilianistas italianos: um denso artigo de Maria Fontes, e primeira parte de artigo do próprio Giovanni Ricciardi sobre o poeta Ildásio Tavares.

 

Conforme comunicação na revista anterior, a editora Antonella decidiu dedicar a Giovanni Ricciardi, que era um assíduo colaborador, a republicação de alguns dos artigos dele. E, ainda, um artigo sobre a vida e a ação do presidente humanista de Angola: o poeta Agostinho Neto

 

Para finalizar o número 28, no Angolo della Poesia, SARAPGEBE reproduz a Ária de Lorenzo, retirada de Lídia di Oxum, de Lindembergue Cardoso, com libreto de Ildásio Tavares. Trata-se da primeira Ópera Negra Baiana e a primeira Ópera brasileira escrita em português e youruba.

EM ITALIANO E PORTUGUÊS.  http://www.sarapegbe.net/

 

sábado, 30 de dezembro de 2023

 

                          Chuva de Janeiro  

                                 Cyro de Mattos

 

Depois que o marido faleceu perdeu o interesse pela vida. Vivia por viver. Com ele vivera trinta anos de casada e soubera como o calor do corpo se aquecia no amor. Quando se é idosa, a experiência de vida diz que esse calor do corpo sai de cena, ainda mais quando o seu homem já não está ao seu lado para consumar o ato mais prazeroso da vida.

Os dois filhos estavam casados, viviam no exterior. Ela morava em um apartamento de quarto e sala. Passava com a aposentadoria de professora estadual. Todos os dias seguia para a pensão onde fazia a refeição do almoço. Sentava-se à mesa pequena, reservada para ela no canto da sala.  De lá viu pela primeira vez o homem de cabelos brancos, olhava para ela. Tinha um brilho diferente nos olhos.  O olhar dele se repetiu nos outros dias, deixando-a sem jeito. Ficou assustada quando ele se levantou de sua mesa e pediu permissão para fazer-lhe companhia durante a refeição.

          Disse que era um viúvo aposentado, fora funcionário do Banco do Brasil. Um dia convidou-a para passear no parque. A princípio relutou, mas diante da insistência dele outras vezes, resolveu aceitar o convite.  Conversaram sobre a vida, seus momentos entre o alegre e o triste, foram se tornando íntimos.  Num ponto concordaram, viver sozinho, sem ter ninguém como companhia, era ruim. Deram uma volta no jardim, sentaram no banco embaixo da árvore frondosa. Jogaram migalhas para os pombos, a seguir para os peixes na lagoa.

Na tarde fresca, um vento morno passava no rosto dela como delicadeza de lenço, leveza de carícia. Um casal de namorados, em cada beijo que sorvia nas bocas ávidas, revelava que a vida era boa e bela, se fazia saudável no calor que se estendia por toda a extensão da pele, tinha que se dar valor a ela.

Ele fez questão de levá-la até o prédio onde ficava o apartamento dela. Na entrada do pequeno edifício olharam-se em silêncio antes de cada um querer dizer algo ao outro, que eles mesmos já sabiam o que era e que se mexia como uma chama que lampeja dentro. Talvez um convite para conhecer o apartamento de perto por ele. Convite dessa natureza seria impossível, embora houvesse no rosto de cada um deles o olhar de brilho conivente.

          Ele disse:

- Muito obrigado pela companhia.

Ela disse:

- Obrigada digo eu.

Despediram-se com leve aperto de mão.

Daquela vez quando terminaram de fazer o passeio pelo parque, ele a convidou para conhecer o apartamento dele. Era também um quarto e sala. Ela perguntou quem fazia a arrumação e o asseio. Respondeu que havia contratado uma faxineira. Vinha duas vezes na semana fazer a faxina. Notou que certas coisas não estavam no lugar devido. Fez a arrumação com esmero.  Limpou a poeira na mesa e nas duas cadeiras. Deu brilho em alguns objetos domésticos. Um pouco cansada foi tomar um banho no chuveiro de água quente. Vestiu o roupão que pertenceu a ex-mulher dele. 

Ela sorriu quando ouviu o convite para ir se deitar com ele.

           Então vieram os primeiros beijos. O ato para que alcançasse o auge exigia concentração e esforço. E aconteceu o máximo quando o prazer de ambos ao mesmo tempo precipitou a vertigem. Souberam que ainda restavam um pouco neles daquilo que motiva a vida. Era preciso de agora em diante aproveitar bem antes que não restasse mais nada. Foram alguns anos de convívio harmonioso, decorrente da união sem atrito entre o espírito e o corpo, que acordava rejuvenescido, embora no estado de fuga repentina, em cada vez que o ato se consumava dentro, como algo precioso que ia ficando longe nos seus contornos e desejos.  

   Quando ocorreu aquela primeira vez em que dormiram juntos, ela lembrava agora, acordou cedo, sorrindo na madrugada que chegava cheia de vida. Os fogos já haviam espalhados suas flores no céu da noite festiva.  Movimentou-se no quarto com cuidado, não queria interromper o sono tranquilo dele.

Fora até a janela. Lá ficou olhando a chuva que caía frequente, embora

sem fazer barulho molhava a rua. Escorria pelo vidro da janela na primeira madrugada de janeiro.